Capa do livro que inspirou este texto |
Imagino que, seja na vida real, seja no cinema, todos nós já
vimos o efeito de um golpe de marreta em uma parede ou em outra construção humana.
Agora, imaginem uma estátua de gesso. Pode ser a do Platão, por exemplo.
Imaginem aquele busto do Platão que costumamos encontrar nos livros de
filosofia por aí. Então, imaginem o efeito de um golpe de martelo bem no meio
das fuças do busto do Platão.
Simbolicamente, isso é filosofar a marteladas. Não, não é um
incentivo à depredação de bustos e outras estatuetas do patrimônio cultural. Devemos
manter o cuidado de não pensar tão literalmente.
Busto clássico de Platão prestes a tomar uma martelada nas fuças. |
Essa ideia foi popularizada por Nietzsche, através do
subtítulo de seu livro “Crepúsculo dos Deuses: Ou Como Filosofar a Golpes de
Martelo”. Não sou um profundo conhecedor do pensamento desse filósofo, mas me
atrevo a ler alguma coisa e a pensar com minha própria cabeça. Nietzsche
mostrou insistentemente os perigos de adorarmos ídolos e insistiu até a beira
de ser considerado um chato impertinente, o quanto não apenas as pessoas do
senso comum como também os próprios filósofos caem em adoração a ídolos.
Vale a pena ressaltar que esses ídolos não são os participantes
daquele programa do SBT e nem são os artistas, cantores ou super-heróis da
cultura popular. Bem, mais ou menos. Os ídolos dos quais Nietzsche nos
alertou eram intelectuais e pensadores considerados clássicos e consagrados na
história da Filosofia, ou melhor ainda, as ideias propostas por tais pessoas. O Platão, do exemplo acima, pode ser considerado um
expoente dentre eles.
Exemplo de ídolo religioso pagão. |
Ídolo, nesse contexto, também possui outro significado. Nos
antigos tempos bíblicos, ídolos eram as estátuas de barro que alguns povos
faziam para representar suas divindades. Nietzsche usou esse termo
metaforicamente. Segundo seu argumento, hoje nós dificilmente fazemos ídolos de
barro (o pessoal católico fazia suas imagens de madeira, algumas vezes oca, mas
agora fazem de qualquer material, do ouro ao plástico), mas algumas ideias que
aceitamos sem criticar acabam por se tornar ídolos. Aceitamo-las
e as veneramos como a divindades.
Um ídolo dos nossos tempos, por exemplo, é a superioridade
da espécie humana quanto aos outros animais. Um ídolo ainda mais falso é a
superioridade de alguns povos sobre outros. Terrível como a história está
repleta desses exemplos. Um ainda mais comum é a superioridade das pessoas
ricas sobre as pobres.
O trabalho da filosofia, a partir disso, é destruir tais
ídolos. Como a ilustração da martelada no busto de Platão, o filósofo deve
levar seu raciocínio crítico às margens da impossibilidade para destruir todas
essas ideias e buscar o que se esconde atrás delas.
A história do pensamento ocidental (o oriental me parece que
não) nos dá alguns exemplos interessantes de ídolos destruídos. Copérnico é
famoso por destruir a noção de que a Terra era quadrada. Hume destruiu a noção
de causa como um princípio ontológico independente dos fatos. Darwin destruiu o
ídolo da origem especial do ser humano. Freud destruiu a noção de que somos
seres perfeitamente conscientes e racionais. Skinner destruiu o ídolo do
livre-arbítrio.
Terminando este texto, deixo um convite. Qualquer pessoa consegue
usar um martelo e, portanto, o trabalho de filosofar à marteladas não deve ser deixado
apenas para os filósofos. Ainda que da mesma forma que um mestre de obras tem
muito mais experiência no uso da marreta que um iniciante, também aquele que começa a questionar suas crenças, e
as dos outros, pode sentir o braço doer
depois das primeiras marteladas, criar bolhas nas mãos. Contudo, com a prática vem a experiência, e o que antes era dolorido e difícil de se fazer, torna-se fácil, leve e até mais preciso. Antes os braços que doíam após tantas marteladas agora ficam ágeis e poderosos ao usar seu instrumento. Antes o senso crítico que era lento e exigia muito esforço, depois de muita prática torna-se ágil e afiado. Qualquer um pode aprender.
Há de se perceber, por fim, que o mesmo martelo usado para destruir também pode ser usado para construir. E assim, do raciocínio crítico e ousado, belíssimas obras de arte surgirão.
Há de se perceber, por fim, que o mesmo martelo usado para destruir também pode ser usado para construir. E assim, do raciocínio crítico e ousado, belíssimas obras de arte surgirão.
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